terça-feira, 13 de agosto de 2019

Um relato de fã sobre os shows de Mark Knopfler durante a turnê europeia de 2019.

Saudações Knopflerianas!!!!!!!

Venho trazer um relato, o qual considero precioso, em que um grande amigo Knopfleriano, Marcos Schulz, gentilmente compartilhou comigo. Sua experiência é rica em detalhes como vocês poderão perceber, experiência essa que é capaz de teletransportar o leitor para o evento. Somente um fã muito sensível e do teu nível, Marcos, é capaz de converter em palavras as sensasões e sentimentos de contemplar um show de Mark Knopfler, obrigado por compartilhar a sua experiência conosco, faço questão em públicar nesse espaço que é dedicado ao nosso mestre e seus seguidores.



Neste ano de 2019 eu tive o privilégio de assistir a dois shows de Mark Knopfler e banda: Lisboa em 30 de abril, La Coruña a 03 de maio. A exemplo de 2015, quando também fiz dobradinha Portugal e Espanha, passei noites de intensa emoção e contemplação. Antes de iniciar este relato eu acho conveniente dizer que sou um daqueles fãs que acompanham as carreiras e lançamentos de seus artistas preferidos com uma certa obsessão, estudando cada detalhe, analisando em profundidade as escolhas e mensagens presentes em cada música nova. Com Down the road whatever não foi diferente. Repeti com ele uma tradição que remete ao Sailing to Philadelphia: um mergulho que dura aproximadamente um mês, período em que escuto e estudo cada acorde, cada rima, busco entrevistas, resenhas e notícias. É uma experiência de descobertas, surpresas, caretas, excitação e também de grandes frustrações. Ao que geralmente se segue um frenesi de buscas no youtube e blogs específicos (neste caso sobre Mark Knopfler) para ver como aquele material bruto será dilapidado ao vivo, na frente das pessoas. Uma das coisas mais mágicas que a música torna possível é essa visualização que a pessoa tem de uma determinada canção que ganha uma nova forma, corporificada e remodelada tal qual vaso de barro. À medida que caminha cada turnê essas formas se cristalizam, por vezes restando uma sensação – comum a todos, eu acredito – de se acostumar com a beleza de uma coisa até que ela se torne cansativa. Ao comprar ingressos para os shows de 2019 eu sabia de antemão que veria um show de uma beleza cansada, então não criei expectativas enormes, até mesmo porque a “virgindade” eu já havia perdido nos shows de 2015. Dessa vez a expectativa se construiu em torno da ideia de despedida. Das turnês, dos palcos, de Lisboa, da Espanha. Eu fiz questão de me manter por fora do que acontecia nos primeiros shows dessa turnê, justamente para que pudesse me surpreender, eu queria descobrir cada música no calor da hora, nos seus primeiros acordes. Mas a única coisa que eu sabia previamente, e que estava “caindo de madura”, é que Mark estava a se despedir dos palcos estrangeiros e (nem tão) longínquos de seu jardim inglês, onde se espera que venha a fazer mais apresentações esporádicas no futuro. Então minha emoção extra partia desse ponto: como seria o “até nunca mais” de um artista com 4 décadas de carreira e mais de 200 músicas originais de repertório pessoal? Qual seria a seleção, as palavras usadas, os recortes? Guardem esses questionamentos, mais tarde serão retomados nesse relato, pois foram pensamentos que eu mantive constantemente durante o show de Lisboa – a qualidade do que eu veria e ouviria passaria necessariamente por esse filtro.

Um último detalhe antes de passar ao repertório: como em 2015, fui acompanhado de minha esposa, que não é fã de Mark Knopfler, nem perto disso, mas que sabe apreciar a boa música. Ela me permitiu uma contraposição fundamental para ancorar meus pensamentos quanto ao show, pois um fã deve aprender a desconfiar de seus gostos e ouvir a opinião de quem não apresenta qualquer vínculo ou necessidade de defender ou elogiar seu artista. Quando o show ficasse monótono, perdesse o ritmo, seguisse por um caminho autista, deixando o público de lado, eu saberia. Mesmo que 100% de mim estivesse focado e envolvido no show.

Então vamos ao que interessa.

As luzes se apagam, menos no palco. Surge uma pessoa e o público solta o tantas vezes antecipado e esperado grito de euforia pelo que vai começar. Por causa da excitação a gente nem se importa que aquela pessoa seja um tiozinho com terno da bandeira do Reino Unido, a anunciar de uma forma teatralizada e patética que o show vai começar. Eu sei quem é esse senhor de terno, por ser fã eu conheço essa tradição, espécie de piada interna da equipe que viaja junta nas turnês. Mas pra quem não é fã aquilo não tem graça nenhuma, não funciona. “Ainda esse cara?”, ouvi do meu lado. Foda-se, vai começar, o coração não cabe no peito e os tremelicos no estômago seriam indisfarçáveis, não fosse o fato de todos os olhos estarem voltados para a banda que toma suas posições a acenar. Mark entra com uma mão no ar e a outra na guitarra mais linda que você já viu na vida. Uma espaçonave de um reluzente azul acinzentado. A animação do público é contagiante. Nossa imaginação já vai longe, pensando nas notas que Mark vai tirar daquele objeto. Mas em 5 segundos esse clima de estranhamento e ansiedade se desfaz. Sobram os músicos estáticos sob a seção rítmica de uma música que eu imediatamente reconheci como Nobody Does That, do álbum novo, mas com a qual boa parte do público não sente qualquer conexão. O efeito amortecedor é ainda maior porque é início de turnê, é início de show, é uma canção que aqueles músicos ainda não tocaram muitas vezes. A hesitação é grande demais e se impõe. Os volumes não estão bem regulados ainda, não se ouve muito bem a voz de Mark, que sussurra a letra, ao passo que a guitarra mágica não faz qualquer diferença, não se faz ouvir. As palmas não duraram 15 segundos, já se veem pessoas sem saber o que fazer com a mãos, todos se sentam, alguns começam a mexer nos celulares depois de tirar as primeiras fotos. A música de introdução ao show demora pra engrenar. E eu ali, completamente empolgado, como uma criança no circo, à par e imune ao efeito amortecedor. Já fui fisgado no ano 2000, pra mim é tarde. Mas havia pessoas ao meu entorno, incluindo minha esposa, que reagiam mais aos fraseados dos metais, distribuídos aqui e ali pela música, do que à magia de que eu sabia Mark ser capaz de espalhar, se quisesse. É importante destacar esse papel de renovação, de despertador, que a seção de metais trouxe pro show. Termina Nobody Does That e me ocorre um pensamento ruim: Mark geralmente toca duas ou três músicas (no máximo) de cada álbum novo nas suas respectivas turnês (péssimo hábito, na minha opinião). Então aquilo significava que sobravam uma ou duas apenas, e isso de um repertório riquíssimo: será que ainda veremos “One song at a time”, “Just a Boy away from home”, “Nobody’s Child”, “Good on you son”, entre outras? Tenho certeza de que fui o único a pensar nisso naquele momento, e talvez em todo o show. Tenho que carregar comigo essa tentação de ser pessimista, de sempre pensar em como as coisas poderiam ser melhoradas, mesmo sabendo que eu mesmo não faria algo tão bom pra começo de conversa. Enfim, eu poderia me contentar com o privilégio de estar ali, de poder apreciar o show, de ouvir uma música nova, inédita pra mim. Mas eu já estava me preparando pra me decepcionar com as escolhas de Mark, algo que me acompanha no decorrer das diferentes turnês. É o outro lado da moeda. No fundo eu quero que as pessoas tenham suas cabeças explodidas pela qualidade, pela arte, pela beleza e melancolia da obra de Mark assim como acontece comigo, eu quero que os outros também percebam toda essa potência. Quero compartilhar.



Mas começa a segunda música e já não tenho qualquer dúvida de que não vai ser agora que isso vai acontecer: Corned beef city. Pois é. Corned beef city. Por que raios essa música está num show de despedida dos palcos de Mark Knopfler? O que ela canta, como contribui para a apreciação da carreira de Mark, qual é a moral? Ninguém conseguiu me responder ainda. O fato é que todos os elementos ainda estão lá: guitarra linda com um som maravilhoso, intervenções dos metais que renovam o (pouco) interesse que essa música suscita...e Mark ainda está ali, vai permanecer ali pelas próximas duas horas, então está tudo bem. Continuo em estado de completa entrega e excitação, 100% de mim focado em consumir o som, acompanho cada detalhe, meu cérebro segue ligado em 220v como uma árvore de natal. Mas quando a música terminar as pessoas já estarão um tanto quanto ajojadas nas suas cadeiras, achando tudo muito bonito – não duvido; mas muito confortáveis. E eu gosto daquela arte que chacoalha as pessoas e as obriga a sair da zona de conforto. Pra todos os lados que você olhe encontrará uma “música bonita” pra preencher o repertório de um show dele. Isso é fácil. Só que eu já fui picado pelo mosquito da música que te comove e te arranca de ti mesmo, agora essa é minha droga e não espero menos que isso o tempo todo. Uma pena que eu tenha estabelecido uma barra tão alta pra pular, um critério de exigência improvável. Uma pena que Mark tenha se transformado numa espécie de corporificação da ideia de zona de conforto...

A terceira música vai provar que estou certo e errado ao mesmo tempo. Sailing to Philadelphia é magnífica, é comovente, envolve as pessoas, provoca olhos e ouvidos a perseguir o som e as alternâncias de timbres e solos. Ela é profundamente narrativa e nos tira do tempo e do espaço. Esse é o Mark que facilmente pula por cima daquela barra que eu ergui demasiado alta para os simples mortais, essa é a opção certa para um “show despedida”, e, mesmo que já tenha quase duas décadas de vida nos palcos, ainda é uma canção pertinente e, por isso mesmo, poderia abrir esse show. Salvaríamos 10 minutos para “desperdiçar” em outras escolhas, teríamos mais tempo pra grandes surpresas – muitas das quais ainda estariam por vir. Como comprovação disso, olho para minha esposa mais uma vez, só que agora ela tem os olhos brilhando enquanto bate palmas. Em resumo, o que tivemos até aqui já teria me levado feliz de volta pra casa, já foi algo fantástico e que valeu o ingresso. Mas peça a um fã para comparar esse início de show com o que poderia (sem qualquer esforço sobrenatural) ter sido. De novo, os dois lados da moeda. De novo a parte que falta ao som para virar arte: potência! Sabendo que Mark toca ao vivo apenas aquilo que lhe apetece (e sendo eu mesmo um amante das guitarras e dos violões), a única resposta possível para esse dilema é que Mark escolhe tocar aquilo que ele acha divertido tocar. Corned beef city pode até ser prazeroso de tocar (eu não acho), as mudanças de acordos, o uso do slide, a levada que se assemelha ao ruído do trem...Mas apenas o fato de empunhar uma Danelectro e optar por cantar sobre uma cidade sem grandes atrativos, deixando de lado a possibilidade de oferecer ao público a inédita Just a Boy away from home, que explora muito melhor as qualidades da guitarra combinada ao uso do slide e que é uma verdadeira lição sobre a apoteose da vida vista em retrospectiva? Se houvesse alguma alternância dessas músicas repetitivas com outras novas ao longo da turnê, como Mark fez em 2013, por exemplo, eu confesso que abandonaria esse argumento. Mas a verdade é que, no momento em que escrevo essas linhas, a turnê já está no seu terceiro mês, e o repertório segue respirando com dificuldade, abafado pelo gesso e gaze - vale lembrar que Why Aye Man tomou o lugar de Nobody Does That nos shows ao longo da turnê. Se é uma mudança bem-vinda ou suficiente fica a critério de cada um, eu particularmente gosto do máximo de variação possível nos setlists. Não gosto da sensação de ter visto um show com estrutura idêntica a um outro em Berlim, Zenith, Barcelona, etc. O público gosta de se sentir especial, gosta de ouvir algo só dito ali, pra ele, naquele dia, como um segredo, uma confidência. O que é um fã senão um confidente?


A quarta música me deu um soco no estômago e o público inteiro sentiu. 10 mil cérebros explodidos ao mesmo tempo por uma sequência de 3 ou 4 notas. Quando surgem os primeiros acordes de Once upon a time in the West dá pra dizer que o show, de fato, começou. Vê-se que a banda está aprendendo a tocá-la em novos moldes, há uns desencontros na execução da introdução (repetidos no final). Mas não interessa. Para o fã esse momento é mágico, e quando ele é mágico para muitos fãs ao mesmo tempo, aqueles que não são fãs (e que talvez nem conheçam a música) acabam se contagiando, eles percebem que estão diante de algo especial e se tornam crianças de novo, a investigar o que se passa por que também querem fazer parte daquilo. E num estalo a música já está no fim, eu seco uma lágrima daquelas de cantinho de olho, que não chegam a escorrer pela cara, mas que não adianta esconder: a arte em toda sua potência fez sua aparição neste 30 de abril, já não era sem tempo! Nessa hora o show começa a te operar: você ainda não resolveu a dor do primeiro corte e o médico já começou a espalhar outros pra todo lado, emendando as dores umas nas outras, revezando os instrumentos espalhados pela mesa de cirurgia. Então o que passo a analisar não foi fruto da reflexão propriamente dita durante o show, mas um relato que mais parece o catar de fichas que foram caindo com o tempo e pelo caminho. Um dessas fichas diz respeito à “marcha” ao fundo dos acordes da introdução. É algo genial, confere uma expectativa para o que vem pela frente ao mesmo tempo em que encaminha uma interpretação um pouco diferente da que estamos acostumados a ver sobre essa música. O embrutecimento dos seres humanos nas grandes cidades, ironicamente pelas circunstâncias da vida moderna, ganham a coloração militar, e o rasgado da guitarra Gibson Les Paul com exatamente a perfeita quantidade de distorção (coisa que poucos sabem fazer) deixaram a música renascida, jovem de novo. O fã sente que as escolhas certas foram feitas, escolhas essas que parecem agora tão óbvias, mas que ninguém teria pensado antes. Também o rodízio de solos com as flautas e metais deixam o público tonto, e aquele embrutecimento todo que a música canta e critica é dissolvido numa aura que eu só consigo descrever como “espiritual”, algo etéreo e envolvente, rasgado aqui e ali pelo timbre da Les Paul. Violência e beleza. Fascínio e repulsa. Forma e conteúdo. Era uma vez no oeste...

A palmas e gritos ao fim dessa música vieram com uma ideia provocativa: estaria Mark reapresentando Once Upon a time in the West como forma de “reler” sua obra e empacotá-la num show de despedida que de alguma forma represente os álbuns da carreira toda? Será que o setlist foi pensado para oferecer um pedacinho de cada álbum e, assim, despedir-se de Portugal (e de outros palcos de outros países) com um grande “este sou eu” - e já me passa pela cabeça a mensagem por trás de This is us...e agora a ideia já se torna irresistível, começo a pensar se teremos pelo menos uma música de cada álbum no repertório de uma única noite. Seria fantástico! Começo a torcer para que isso aconteça e – como veremos – a cada música que se segue essa esperança fica mais forte.

Esses pensamentos tomam um certo tempo e transbordam por toda a introdução de Romeo & Juliet, que nunca saiu dos shows de Mark e, por isso, já não provoca em mim muito entusiasmo. Por isso fui tão afortunado de estar acompanhado nesses shows, porque minha esposa me mostrou claramente a importância dessa escolha para o engajamento do público no show. O não-fã fica completamente pirado nessa música, e nem a mudança de instrumento (violão National da clássica capa do álbum Brothers in arms foi trocado por um Dobro que, de longe, não pude identificar, e também não importa muito porque funciona tanto visual quando sonoramente) pode acordar o público daquela tradicional hipnose que R&J sempre causa ao vivo, independentemente das diferentes roupagens e arranjos que ela já apresentou na sua longa vida. E falando em arranjos, as próximas duas músicas do show reforçaram em mim a admiração que eu tenho pela capacidade de Mark de turbinar uma música quando a apresenta ao vivo, especialmente por se fazer rodeado de grandes músicos. My Bacon Roll e Matchstick Man são mais duas que vieram do álbum novo – não são nem de perto as melhores do álbum e, de certa forma, baixariam bastante o nível de engajamento do público com o show, não fosse a forma como Mark as retrabalhou. My Bacon Roll, uma música que não merece estar num show “de despedida” e que peca por ser pastiche de um modelo tornado clássico por Mark Knopfler – o de construir músicas-retrato de uma pessoa amarga pelo registro das suas observações mesquinhas do mundo. De fato, Mark introduz My Bacon Roll, em Portugal, com uma explicação: “this is the kind of guy that doesn’t know better than to complain about life. It’s the brexiter”. Por mais que eu tenha adorado essa forma sutil de criticar esse conservadorismo podre que tomou conta do país de Mark (e de tantos outros), custo a entender como essa canção ficou tão fraquinha, tão sem sal, tão asséptica na versão gravada em estúdio e lançada no álbum. O fraseado é ruim e se encaixa mal nas estrofes, a guitarra está preguiçosa, a tentativa meio estereotipada de ser da família de Money for nothing... enfim, em outro momento posso me aprofundar nos motivos que me levaram a não gostar dessa música durante a apreciação do álbum, e também entendo as pessoas que gostaram. Ela certamente não é ruim de ouvir. Só não concordo com as escolhas que foram feitas nela, ela tem potência de ser outra coisa, de ser melhor, de não ser preguiçosa. Daí minha surpresa positiva quando, no show, ela vem cheia de energia, cheia de propósito. O final é apoteótico e ela funciona, mesmo não sendo “uma das conhecidas do Dire”. A mesma sensação se repete com Matchstick Man, que não passava de uma “música extra”, na melhor das hipóteses – inclusive plágio dele mesmo, na medida em que repete toda estrutura e acordes de Heart of Oak, essa sim uma grande contribuição à obra de Mark, algo que veio pra agregar e continha inspiração. Matchstick Man é mais do mesmo, é o Mark cantando sobre como ele gosta de guitarras e fez de tudo pra “dar certo” na carreira musical. “You really gotta want it”, como ele se repete em inúmeras entrevistas. Sem dúvidas que a música merece estar num “show de despedida”, pois fala da trajetória do artista, seus sacrifícios, etc. Mas já nos primeiros acordes me bateu um descontentamento por mais essa escolha questionável, dentre tantas outras músicas inéditas que literalmente pediam pra ser tocadas ao vivo...dentre tantas músicas magníficas do álbum novo... Mas como num show do Mark não poderia faltar o componente celta e as gaitas de foles, Matchstick Man mergulhou no caldeirão cultural em que Mark sempre bebeu e saiu dali diferente, saiu melhor, potente. É uma das músicas que mais mostra quem, de fato, é o músico cada vez mais velho e lento que está ali diante de um público hipnotizado de gente igualmente cada vez mais velha e lenta. Essa sonoridade nos faz viajar, e o show já não acontece aqui e agora. Com um pequeno artifício que eu nunca vou entender completamente ou ser capaz de reproduzir, Mark bota todo mundo numa espécie de sono nostálgico que muito bem poderia ser uma nave ou uma nau. O som embala essa viagem e, enquanto a música se aproxima do fim, as pessoas se reconectam com suas raízes, seus passados ancestrais e indizíveis. Esse lance celta que o Mark tira da manga é um dos motivos de ser impossível para um fã ficar alheio ao que ele faz e grava, pois já é tarde demais, já estamos viciados e queremos sempre mais uma dose. As flautas se silenciam e ancoramos às margens da realidade de novo pra bater palmas e limpar os olhos, de novo. Dessa vez vejo mais gente compartilhando esse espírito, e começa a cair a ficha das pessoas não-fãs daquilo que eles vieram testemunhar no show e não sabiam. Até o final do show, quem não se comove uma ou duas vezes, boa gente não é.

A próxima música do show foi, para minha surpresa, Done with Bonaparte. Quando os músicos se perfilaram todos no palco e, de longe, eu reconheci um acordeão pendurado no peito de Jim Cox, já sabia que se tratava dessa velha conhecida, mas eu não imaginava que ele voltaria a essa canção depois de deixá-la de lado por um par de anos. Mark apresenta a banda do mesmo jeito de sempre, mesmos elogios desde 1996. Aplaudi muito todos aqueles músicos, é claro, mas senti uma emoção especial quando Mark fala do Richard Bennett. Ano passado eu arranjei uma conta no Spotify e lá estão todos os discos desse cara, com temas instrumentais muito variados em estilo, pouco variados em termos de qualidade: tudo da mesma excelência. Então foi muito legal ouvir o som de seu bazooki na introdução em dueto com Mark, antes de toda a banda participar. Essa música foi tocada de uma forma muito padrão em Lisboa. Em La Coruña teve um toque especial no trecho em que ele canta “Spanish skies, egyptian sands”. Danny Cummings até apontou pro céu, pra delírio da torcida. E mais pra frente na turnê, pelos vídeos de fãs postados no youtube, eu reconheci que o andamento da música mudou, não mais aquela levada que lembra a marcha de uma tropa de soldados, mas sim uma balada menos exigente, com a caixa soando apenas na metade dos tempos, um trabalho mais elaborado na bateria conferiu um certo “funky” à canção, levando as pessoas inclusive a se movimentar com o corpo de uma maneira diferente ao longo da performance. Deve ter sido obra do Ian Thomas, provavelmente surgiu em algum ensaio ou passagem de som durante a turnê. Isso deu um gosto especial pra essa música, como é fácil comparar pelo vídeos no youtube. Uma pena que em Lisboa e La Coruña eles ainda não haviam feito essa mudança, então, sinceramente, não tem muito o que comentar sobre Done with Bonaparte. Já é 2019, então eu também já estava “done with” Done with Bonaparte.


O show, porém, estava longe de me causar qualquer desilusão. E eu ainda não tinha a mínima ideia do que ainda estava por vir. É verdade que houve certa frustração com algumas escolhas até aqui, com as coisas repetitivas de sempre, mas pra cada uma delas houve retorno dez vezes mais prazeroso. Prova disso foi a surpresa que eu tive com a próxima música, que eu reconheci no segundo acorde. Já saí gritando o nome e o povo todo em volta de mim deve ter achado que eu era muito maluco ou muito chato, provavelmente os dois. Heart Full of Holes é uma das minhas músicas prediletas da carreira do Mark. Cada álbum sempre me traz uma música preferida com a qual eu me sinto de alguma forma conectado. No caso do álbum Kill to get crimson, de 2007, adotei justamente Heart full of holes. Talvez pelo tom melancólico da narrativa, a nostalgia evocada pela ideia da música em primeira pessoa de quem se volta para suas lembranças e escolhas na vida, pensando “como eu sobrevivi até aqui?”. A música foi majestralmente tocada, ainda mais se levarmos em consideração que a letra é longa - Mark até se atrapalhou pra se lembrar de alguns trechos. Os refrões são de uma riqueza de timbres muito rara, uma vez até uma pessoa ouviu que eu escutava essa música em alto volume e comentou que parecia uma composição renascentista. Confesso que não sei como é um composição renascentista, mas aquilo fez sentido imediatamente pra mim, pois as linhas melódicas, simples em si, complementam-se pra criar um aspecto complexo e sofisticado...é uma música que parece que consumimos com outros sentidos, não só com a audição. Percebi já no final de música que Jim Cox não estava mais com o acordeão no peito, o que me deu uma sensação de estranhamento. Por que deixar para os teclados de Guy Fletcher o som de acordão sintetizado em vez de tê-lo completo e original pelas mãos do (é discutível) melhor músico da banda? Calculo que ficou ao cargo de Jim fazer a “cama” detrás de seu piano deixando espaço para a principal mudança: a introdução dos metais na melodia de refrão. De fato, é possível reconhecer essas intervenções de piano aqui e ali por toda música, só é preciso estar mais atento. Quando terminou eu estava completamente convencido de que Mark estava fazendo uma releitura de toda sua obra pela escolha pontual de músicas de todos os seus álbuns. Eu tinha certeza de que era esse o motivo dessa raridade no setlist. Por que outro motivo ele teria ido buscar uma música “obscura” de um álbum praticamente esquecido da carreira? Infelizmente essa forte suspeita não se confirmaria, mas nesse momento ela me deu um impulso extra de emoção. Outra coisa infeliz foi que essa música ficou de fora do show de La Coruña, então não pude recolher mais impressões dessa performance ao vivo. Eu tinha me preparado com mochila e câmera pra filmar essa música nesse segundo show, então é como diz a letra:

Well, if we go to heaven, and some say we don't
But if there's a reckoning day
Please God, I’ll see You and maybe I won't
I've a bag packed to go either way


A banda mais uma vez se mexe toda no palco e preparam os canhões de luz pra pegar a introdução da próxima música, que seria toda feita pelos metais. Começam os acordes de uma das músicas instrumentais que Mark compôs para filmes, She´s Gone, que duraria pouco mais de um minuto; mas o público mais fiel já sabia que era apenas para antever o que viria a seguir, um dos maiores clássicos do Dire Straits, a genial e imediatamente reconhecível Your Latest Trick, sempre lembrada por aquele saxofone meio “meloso”. Eu já havia escutado ela na turnê de 2015, não era novidade pra mim, mas é sempre uma emoção muito grande testemunhar uma obra musical nascida em 1985, mesmo ano que eu, indelevelmente inscrita na história da música mundial. Foi também uma boa oportunidade pra ver o impacto dela no público não fã, que fica mais empolgado quando reconhece um clássico como esse. Todos cantam juntos, os casais se abraçam e pegam o movimento que o ritmo da música sugere na gente. Então foi mais um grande momento de contemplação, de olhar para os lados e aproveitar o momento, dar um descanso pro cérebro. Esse clima envolvente de relaxamento foi importante pra contrabalancear com os momentos mais enérgicos que a plateia passaria durante Silvertown Blues, próxima música do show e mais uma grande surpresa. Fiquei extasiado nesses 6 ou 7 minutos seguintes, de queixo caído mesmo pela forma como essa música funciona ao vivo. Foi bom mais uma vez perceber o estímulo que a guitarra do Mark causa nas pessoas, e aqui ela deita e rola. O solo final se estende um pouco mais que a gravação lançada no já longínquo primeiro ano do milênio. Já nem saberia dizer quantas vezes eu ouvi essa música quando comprei o CD - meu primeiro álbum do Mark Knopfler. Dali em diante nunca mais deixei de comprá-los logo que saíam, acho que foi o começo de tudo pra mim. Já fazem quase duas décadas, perfazem a totalidade da minha vida adulta, então dá pra dizer que eu, junto com muitos outros fãs espalhados pelo mundo, ansiava por esse momento há muito tempo. Foi emocionante perceber que se tratava de um live debut não só pra mim, mas pro mundo todo, já que ela estreava mesmo nessa turnê de 2019, mais precisamente em 25 de abril em Barcelona (mas eu não sabia, como já mencionei no início do relato). ***Não estou contando a gravação de uma passagem de som em Munique durante a turnê de 2001.



Essa música eu fiz questão de filmar no show de La Coruña, até pra compensar que não consegui gravar Heart full of holes, então aproveitei mesmo que estava com a câmera na mão. Eu sei que essas coisas sempre vão parar no Youtube de qualquer forma, então prefiro manter os olhos no palco e as mãos longe do celular e das câmeras. Mas nesse caso específico eu fui muito feliz com a escolha de filmar, porque em La Coruña o público parece ter sido pego de surpresa, as pessoas ficaram mesmerizadas e baixaram os celulares, eu acho que fui o único que filmei essa parte, dentre as pessoas das primeiras filas, então, quando a música terminou, um rapaz espanhol se aproximou de mim e me pediu pra falar comigo ao final do show pra trocarmos contatos porque ele queria aquela gravação. Mal sabia ele que meu celular tem uma câmera horrível e que não ficaria tão bom; ainda assim, foi a oportunidade de conhecer um fã espanhol e trocar uma ideia rápida depois do show. Um dia, quem sabe, volto à Espanha e visito o Jesus, morador de Burgos que, como eu, viajou um bocado pra ver e ouvir Mark Knopfler.

Quando termina Silvertown Blues o público fica um tempo extasiado, aposto que as pessoas não esperavam que uma música tão desconhecida (se não é um clássico do Dire metade da plateia já não conhece bem) arrancaria tantos suspiros, mas também se começa a sentir um certo cansaço, as pessoas estão impacientes pra ouvir Sultans of Swing ou Money for Nothing – ou, no meu caso, mais músicas do novo álbum. O silêncio é quebrado com uma introdução alucinante de trompete que remete imediatamente à música caribenha/cubana. Começaria Postcards from Paraguay, uma constante nos show de Mark desde 2007 durante a Kill to get Crimson promotion tour 2007, mas é uma das que eu considero sempre bem vindas. Em diversas ocasiões as pessoas próximas de mim se identificaram com ela e, mesmo não sendo fãs como eu, sempre repetiam que essa música era muito boa ou “a predileta” delas. Uma coisa é certa: ela traz muita animação, ela dá vida às coisas e pessoas, que começam a se mexer e a sorrir. Sempre achei muito curioso como um velho inglês sem qualquer malemolência ou propensão para a música dançante resolve compor algo como Postcard from Paraguay – e acerta tão bem no ponto. Nesta turnê ela está no seu auge, os metais estão no seu território, a percussão de Danny Cummings deixa ela ainda mais próxima do clima tropical. Quase parece que alguns músicos da banda vão se mexer e tirar um pouco os dois pés cravados do chão... mas isso já seria demais para um pequeno bando de ingleses. Inicialmente eu não fazia muita questão de ouvir essa música, preferia mil vezes que Mark tivesse optado por tocar Heavy Up, música do novo álbum em que os mesmos elementos poderiam ser explorados. Mesmo assim, Postcards foi um sucesso retumbante – os últimos dois minutos poderiam durar uma hora tranquilamente e ninguém iria achar ruim, sobretudo devido aos solos atropelados em revezamento uns por cima dos outros, ao melhor estilo Buena Vista Social Club. Ali os músicos disputam o espaço e a atenção, parecem competir entre si, mas em nome da elevação da música, e não pra aparecerem ou fazerem figura de grandes virtuosos. Finalmente a música acaba, e quem ainda não tinha percebido que estava presenciando algo espetacular, agora sente a ficha cair: mais importante que Mark é a banda, e mais importante que a banda está a Música, com M maiúsculo, a música como conceito, a música como Arte - a saber, a sucessão e o uso de estilos musicais e timbres e sabores, cada uma na sua devida medida e proposta, sem que se saiba exatamente qual é o ritmo musical principal do show, e quando você pensa que vai ouvir Blues, Mark te dá música celta, depois parece que vem um rock com solos de guitarra e a coisa termina num R&B cheio de pitadas de Soul e um pouco de Funk norte-americano. Daí você pensa “Ah, então é tudo mais ou menos Pop/Rock”, e logo depois você passa 5 minutos no Caribe.

Ao menos era essa a sensação que eu tinha quando olhava o rosto das pessoas e imaginava o que será que elas estão pensando, se estão gostando do show como eu, etc. Durante os breves 2 segundos de silêncio antes da próxima música eu dou um grito lá de trás da plateia: “Sul-américaaaaaaa”. Não me contive. Queria marcar uma presença ali no meio dos europeus que sempre tiveram todas essas coisas mais ou menos em sua órbita. Queria dar um pouco da minha perspectiva, demarcar meu território de origem que tantas vezes já havia visto que era invisível e insignificante aos olhos do “europeu médio” – aquele que ainda está discutindo qual país europeu teve o maior império (moderno ou antigo, tanto faz).

Não deu tempo de ver a reação das pessoas ao meu singelo e ao mesmo tempo pretensioso grito, porque Mark iniciava de surpresa a primeira estrofe de On Every Street, única música do álbum de mesmo nome lançado em 1991 que Mark ainda apresenta na carreira solo mais recente (Calling Elvis ele levou até o início dos anos 2000, The bug ficou em 1996, o resto só ganhou os palcos na turnê de 1991-1992 e olhe lá). Essa música ativou a nostalgia do público novamente, já preparou minha imaginação para o que poderia nascer de dentro dela com essa nova formação, ao mesmo tempo em que pensei: está o Danny Cummings, daquela turnê, está aí mais uma música de um álbum diferente, inclusive remetendo ao On The Night, “acho que sim, Mark está apresentando pelo menos uma música de cada álbum de sua carreira como uma espécie de lembrança restrospectiva de tudo que já fez”. Fiquei feliz com isso, porque os fãs sabem que nem Mark, nem as pessoas responsáveis pela produção e lançamento de seu material, têm a mínima perspectiva totalizante do que foi a carreira dele, de tudo que ele compôs, de seu lugar na grande cadeia de artistas da música popular do século XX e início do XXI. Falta – e muito – uma valorização mínima desse aspecto, ou mesmo um reconhecimento próprio de que há mais coisas pra minerar de dentro dessa grande mina que é seu catálogo, coisas que não precisam ter reconhecimento porque eu, o fã chato, gosto disso e quero isso, ou porque há dinheiro e consumo a serem gerados a partir disso. É porque vale a pena mesmo, nos ajudaria a ver a música com olhos menos mesquinhos de quem quer competir em vez de agregar. Pensava que essa visão própria do lugar que Mark ocupa poderia estar presente neste show que eu estava a assistir, seria uma grande forma de encerrar essa parte da carreira (as turnês). Uma maneira não egocêntrica nem impositiva de dizer, “fiz um pouquinho de tudo, me inspirei aqui e ali em coisas muito variadas, não negligenciei nem subestimei nenhum aprendizado com artistas e ritmos absolutamente diferentes e variados entre si, consegui criar uma certa identidade a partir disso e não me acho melhor que ninguém, compus coisas de qualidade questionável, mas em grande maioria eu acredito que acertei, e isto o provam as milhares de pessoas que esgotam os ingressos para os shows em dezenas de países do mundo”. Projetei toda essa reflexão como se fosse eu ali, como se coubesse a mim escolher ali mesmo no calor do momento o melhor jeito de encerrar uma carreira que por alguns momentos julguei ser a minha, mas que eu nunca tive nem terei. Essa projeção fez eu aproveitar muito pouco da música On every street, como a essas alturas a pessoa que está lendo esse relato já deve ter percebido, porque ela também embarcou comigo nessa reflexão e esqueceu da realidade do show. Quando volto a mim a música está no fim, ela termina de uma forma muito menos virtuosa e espetacular do que a turnê de 1991-1992 (Paul Franklin mandou lembranças), então eu confesso que eu bati umas palmas meio burocráticas - algo não merecido, mas acontece. Minha memória dessa música, portanto, existe mais pela repetição em La Coruña e depois no Youtube do que pelo saborear nota a nota em Lisboa.

Segue o show, já passada uma hora e um quarto, com a fantástica Speedway at Nazareth. Há quem não goste mais de ouvir essa música, de tantas vezes que ela já foi tocada nas turnês desde 2000. De fato, se eu pudesse escolher teria pedido qualquer uma do novo álbum, que eu estava escutando sem parar naqueles dias - provavelmente pediria One Song at the Time, justamente porque me parece que tem a mensagem que melhor combina com a ocasião. Se eu fosse me inclinar mais pelos solos de guitarra, pediria Just a Boy Away From Home ou Trapper Man. No meu mundo ideal poderia vir a minha música predileta do novo álbum: Pale Imitation, uma B-Side. Mas como estamos em um show de Mark Knopfler e a zona de conforto é o estilo de vida dos ingleses, vamos de Speedway at Nazareth, é o que temos pra hoje. Ainda bem que o “mais do mesmo” de Mark segue uma regra geral de expectativa altíssima. Não é preciso ser fã pra se emocionar com os acordes, a letra e o fechamento dessa música. Ela nos leva a dar voltas num circuito como um carro de corrido num dia perfeito, em que o piloto “não cometeu nenhum erro”, e isso basta – pouco importando a posição final no grid. A verdade é que Speedway at Nazareth é um tratado fonográfico sobre a natureza humana. O tema das batalhas automobilísticas e as pequenas grandes vitórias de pessoas comuns fantásticas já foi muito explorado musicalmente, com destaque para George Harrison  - ele mesmo um fanático por automobilismo – e Rush. Um dia ainda pretendo fazer uma playlist só com músicas sobre esse tema, acredito que nunca foi devidamente analisado por aí. Então, voltando ao show, acho que Mark manteria Speedway eternamente nos seus shows, principalmente porque tocá-la na guitarra é algo muito divertido, dá grande prazer botar as notas, uma em cada curva, e levar o carro pra linha de chegada. É tão legal que normalmente as pessoas recomeçam a tocar a música logo que acaba o solo final, como um carro que cruzou a linha de chegada mas ainda vai dar mais uma volta. Não adianta, as pessoas têm razão quando dizem que é uma música que já está no setlist há muito tempo, mas ela sempre terá seu valor e vai funcionar sempre. Ainda mais enquanto Mark estiver rodeado das flautas, violinos, trompetes e pianos pra não deixarem sua Gibson Les Paul correr sozinha pelo traçado da pista.



Com Telegraph Road termina a primeira parte do show, aquela que supostamente deveria ser o show “oficial”, antes do encore (ou bis), que as pessoas hoje em dia planejam como parte do show. Essa pausa pra descanso é bem vinda, e não só pra banda. Acontece que é preciso muito tempo pra se recuperar do que a guitarra faz em Telegraph road. É quase inacreditável mesmo. O efeito de hipnose é geral, você olha em volta durante o solo de Telegraph Road e as pessoas parecem zumbis, nem piscam. A música toda tem uma certa aura tautológica, mágica até; os momentos e climas vão se sucedendo, a história da civilização vai sendo cantada e musicada quarteirão por quarteirão, estrofe por estrofe, palmo a palmo da estrada que, até mesmo por ser descrita baseada em eventos reais, confere vida à canção e... Quem estou querendo enganar? Estou aqui chovendo no molhado, descrevendo uma coisa impossível de descrever, pois a música existe justamente por isso – pela impossibilidade de se colocar em texto essas coisas sem matar uma parte da realidade delas. A música, pelo contrário, evoca essas coisas indizíveis. Quem já ouviu sabe, e quem apenas ouviu, sem dar a devida atenção, ainda não sabe o que está perdendo e por isso eu invejo essas pessoas, pois ainda tem essa descoberta pela frente. Não sei se vale a pena relatar mais alguma coisa sobre Telegraph Road. Talvez a coisa mais interessante que acontece no cérebro do fã durante essa música é como ela joga com a percepção de tempo da pessoa. A música dura uns 13 minutos, há momentos mais calmos e suaves que parecem que duram uma eternidade aos ouvidos de quem prefere a parte “não progressiva”, mas ao mesmo tempo esses minutos parecem segundos, porque tudo passa muito rápido. Mas quando já acabou você ouve a música mentalmente em perspectiva e se dá conta da enormidade e atemporalidade das coisas cantadas pelas duas vozes de Mark (uma pela garganta, a outra na ponta dos dedos), e nessa ideia o tempo se congela. Tudo se resolve no transe do solo final e no aparente descontrole de todos os músicos, absolutamente concentrados no que estão fazendo, ensimesmados na performance, mas jamais isolados. Telegraph Road é um todo vivo que se insinua devagarinho e te atropela no final. Quando o transe acaba as pessoas dariam um rim ou venderiam um parente pra começar tudo de novo. Infelizmente Mark não tocou ela no show de La Coruña, que começou uma hora mais tarde que o normal e foi um dos mais curtos da carreira dele. Aparentemente, como descobri depois, estavam todos queimados no tempo pra pegar o avião pra cidade onde seria o próximo show, no dia seguinte. Sacrificaram essa parte do transe, e o público percebeu. O desapontamento de quem percebeu essa ausência foi impossível de esconder e me marcou bastante. Talvez essa seja a forma mais fácil de entender o que significa ouvir Telegraph Road ao vivo: quando não acontece não tem o que colocar no lugar, vai ficar um vazio ali.

Os vários membros da banda saem de seus lugares. Mark desenrola a alça de sua Pensa Suhr de seu peito e levanta a arma do crime pra todo mundo ver. O sorriso de contentamento é geral, até dói um pouquinho no canto dos olhos porque o músculo não segura mais. E tenho certeza que esse fenômeno acontece no rosto dos músicos também, é uma sinergia ao som das palmas e assobios, que parecem não significar o tradicional “parabéns, estava ótimo, vocês são bons”, e sim um “muito obrigado por isso que vivemos juntos aqui e agora. De verdade.”

Quando a luz apaga e a banda some eu voltei a olhar pra minha esposa depois de um tempo em que esqueci que havia mais gente ali. Conversamos e eu logo voltei pros meus cálculos. Recordo-me vivamente de pensar que faltavam uma música do primeiro álbum (1978), uma música do Get Lucky (2009) e o primeiro álbum solo, feito no meio dos anos 80 para o filme Local Hero (1983). Antes de o show voltar eu já tinha bolado toda apoteose final: Mark voltaria com Sultans of Swing, estourava os miolos de todo mundo (fã, não fã, indiferentes, todo mundo) com ela. Daí puxaria Piper to the End pra lembrar o Get Lucky e fazer marmanjos chorarem, e terminaria com a tradicional Going Home, apoteótica como poucas músicas que eu conheço, tanto que cabe tão bem em formatura, como velório, como entrada de time de futebol em campo, etc. Onde quer que você ponha essa música pra tocar ela vai criar um efeito de estufar o peito e sentir que a vida vivida valeu a pena. Ela é instrumental, mas todas as palavras para montar o significado da vida estão ali.

Infelizmente não acertei meu palpite e não teve nem Sultans of Swing (pecado máximo!) nem Piper to the End (pra meu grande desapontamento, pois se trata da minha música predileta do Mark Knopfler. Talvez do mundo inteiro. Sem brincadeira. EU também nem havia me dado conta até aquele momento que eu estava errado o tempo inteiro: faltavam músicas de vários outros álbuns, como o altamente improvável – por se tratar de um álbum em colaboração com Emmylou Harris – All the Roadrunning (2006), e os mais recentes Privateering (2012) e Tracker (2014). Mas enfim, sabe-se lá o que passava na minha cabeça que embaralhava tanto assim os meus cálculos. Na hora pensei que tudo fecharia com mais 3 músicas que eu sabia ser provável acontecer, e então a probabilidade se juntou à minha vontade e a realidade virou o que eu quis que ela fosse.

Voltando ao show, eu esperava muito pelo momento de ouvir Piper to the End. Ninguém, talvez nem eu mesmo, pode explicar o quanto essa música mexe comigo. Uma pena que não rolou, era a única música que eu fazia questão de verdade de ouvir ao vivo. Mas só não fiquei devastado com essa falta porque outra coisa aconteceu, uma outra coisa que me surpreendeu e me lembrou de uma lição importantíssima: as coisas que não acontecem sob nosso completo controle são as melhores coisas da vida. Eis que a introdução de Money for Nothing começa a se ouvir (e se ver também, já que construíram um efeito de luzes dando destaque para a bateria e a percussão). Do escuro dava pra ver que Mark começava a se ajeitar para o famoso riff de guitarra que tantas vezes eu ouvi e estudei pra saber fazer também, e que certamente já tocava na cabeça de todos. Ele se encolheu um pouco pra ver o baterista por debaixo dos pratos e entrar no momento certo. E daí é gol do teu time no minuto final do jogo que decide campeonato. A guitarra entra mas é impossível ouvir. O que não é exatamente uma perda, porque a gente de alguma forma sente ela dentro da gente, primeiro porque é muito óbvio, segundo porque é um subproduto da emoção geral do momento. Quem não é fã estava esperando essa música porque é talvez o maior clássico da banda Dire Straits. E por isso ficou super feliz, porque finalmente ela veio. E quem é fã já sabe que faz muitos anos que Mark não toca essa música ao vivo, eu já nem sabia dizer qual foi a última vez, e já nem importa muito porque ela é mesmo atemporal. Eu quase nem acreditava que estava finalmente ouvindo aquilo saindo da fonte. Incrível como duas ou três cordas tocadas juntas duas ou três vezes sucessivas podem criar um efeito tão forte nas pessoas. Mesmo quem não conhecesse Money For Nothing teria entrado na onda, só pra estar em sintonia com a reação coletiva que é apaixonante mesmo. Imagino que se o show fosse na Argentina, ou no Rio, ou no México - ou nesses lugares onde o público é participativo e coloca sobre si a co-responsabilidade de fazer o show acontecer em vez de “apenas” assistir – haveria pessoas desmaiando ou pisoteadas. Ninguém fica sentado durante essa introdução. As pessoas só começam a ouvir o que Mark toca lá pela terceira frase da guitarra. Com o andar da carruagem as melancias vão achando seus lugares e os ânimos se amornam e a gente começa a escutar a voz do Mark “cantaronarrando” cada estrafe. Ainda assim os refrões e os solos e a irreverência de Mark (uma das poucas músicas em que ele faz ou diz qualquer coisa diferente de seu “padrão” de comportamento nos palcos) mantém o público engajado até o fim. Mais ao final as pessoas já se acumulam de pé na frente da plateia VIP pra o que seria a última música do show: Going Home. A realização de que vai terminar é uma coisa pesada, mas necessária até um certo ponto. É um pouco cansativo passar por toda essa atividade cerebral e estímulos aos sentidos. Quem gosta de gritar tem, obviamente, um prato cheio – e isso em qualquer show. Até acho as pessoas do público tem um respeito admirável pelo silêncio e pelo trabalho da banda, então são poucas as ocasiões em que alguém arrisca dizer qualquer coisa, mesmo que seja sensível a emoção geral. O entusiasmo misturado com o silêncio é uma coisa estranha e eu fico num estado de ânsia paralítica. Deve ser por essa dualidade incompatível que eu gosto tanto de analisar a obra de Mark, toda ela cravada desses momentos. E talvez seja um pouco pesado demais esse auto controle do espaço que o público se auto impõe. Um pouquinho mais de caos faria bem. Going Home vai terminando, as pessoas vão gravando e tirando suas últimas fotos, uns mais emocionados aqui e ali já secam as lágrimas (vi muito isso de perto do palco no show de La Coruña, mas em Lisboa estava tão longe de tudo – e tão rouco – que apenas mantive um silêncio de veneração e agradecimento pela experiência vivida, não tinha como perceber esse efeito nas pessoas dessa distância real e mental tão grandes). O último acorde se vai, Ian Thomas segura os pratos da bateria com os polegares, e sobramos eu e minha esposa no meio da multidão. Eu ainda fiquei um tempo em vão esperando que a banda voltasse para mais um bis. A parte racional dizia que não havia a menor possibilidade de isso acontecer, mas o fã já tem essa parte racional meio comprometida, e tem também aquela coisa de torcedor que acredita na virada até os 47 minutos do segundo tempo. É uma desgraça isso, uma verdadeira maldição. Algo que só faz sentido mesmo à luz do momento e aos olhos de quem também demonstra seu gosto por algo de uma maneira ridiculamente aberta e espontânea. Coisa de quem para pra pensar essas coisas que eu relatei nos seus mínimos detalhes e aprecia esmiuçar pequenas expectativas, comparar versões de músicas tocadas aqui e acolá, adivinhar pra onde uma apresentação musical está sendo construída e com quem objetivos. É preciso ter pena.

Com o fim de Going Home todos percebem que agora é hora de ir pra casa. No meu caso, seria a pé mesmo. Daria tempo de relembrar detalhes, ver e ouvir registros porcamente feito pela tela do telefone celular. Outras pessoas fazem o mesmo no caminho da estação e mesmo dentro do trem. É também hora de invejar quem comprou um celular bom de verdade pra ter registros melhores desses momentos. Ainda levaria uns dias pra passar aquela sensação de estar pleno, de ter sido inflado. Espero com esse relato atingir outras dessas almas coitadas que vivem isso e não tem com quem compartilhar essa sensação ridícula porque, como eu, já estouraram a paciência da esposa e dos amigos. Termino esse relato no dia do último show da parte europeia da turnê. A essas alturas já sei mais coisas, já poderia recontar algumas partes desse relato de outras formas, talvez insistir para o aspecto negativo da falta de variação do setlist (velha bronca), ou talvez mencionar que ao menos foi tocada So Far Away em uma ou outra ocasião nos shows de julho. Mas faço questão de esquecer esse lance do setlist e terminar num tom positivo, quero aproveitar uma última chance de estimular o leitor que bravamente veio comigo até aqui: vá ver um show do Mark Knopfler. Eu não sei se verei mais algum show dele nessa vida, provavelmente não, mas se a sua vida se inclinar de um jeito que te pareça possível fazer isso, se não te faltarem os recursos e a oportunidade, dê esse presente pra si mesmo(a) e vá. Tenho certeza que você vai ter momentos inesquecíveis e não vai se arrepender de gastar um pouco os neurônios pensando em tudo isso que eu te contei aqui. Vá e depois me conta como foi.


Marcos Schulz – Abril/Julho de 2019




Brunno Nunes.

Um comentário:

  1. Nossa!! Que pérola ler relatos tão intensos!! Um presente para minha alma! Obrigada!! 🤩

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