Saudações Knopflerianas!!!!!!!
Venho trazer um relato, o qual considero precioso, em que um grande amigo Knopfleriano,
Marcos Schulz, gentilmente compartilhou comigo. Sua experiência é rica em detalhes como vocês poderão perceber, experiência essa que é capaz de teletransportar o leitor para o evento. Somente um fã muito sensível e do teu nível, Marcos, é capaz de converter em palavras as sensasões e sentimentos de contemplar um show de Mark Knopfler, obrigado por compartilhar a sua experiência conosco, faço questão em públicar nesse espaço que é dedicado ao nosso mestre e seus seguidores.
Neste ano de 2019 eu tive o privilégio de assistir a dois
shows de Mark Knopfler e banda: Lisboa em 30 de abril, La Coruña a 03 de maio.
A exemplo de 2015, quando também fiz dobradinha Portugal e Espanha, passei
noites de intensa emoção e contemplação. Antes de iniciar este relato eu acho
conveniente dizer que sou um daqueles fãs que acompanham as carreiras e
lançamentos de seus artistas preferidos com uma certa obsessão, estudando cada
detalhe, analisando em profundidade as escolhas e mensagens presentes em cada
música nova. Com Down the road whatever
não foi diferente. Repeti com ele uma tradição que remete ao Sailing to Philadelphia: um mergulho
que dura aproximadamente um mês, período em que escuto e estudo cada acorde,
cada rima, busco entrevistas, resenhas e notícias. É uma experiência de
descobertas, surpresas, caretas, excitação e também de grandes frustrações. Ao
que geralmente se segue um frenesi de buscas no youtube e blogs específicos (neste
caso sobre Mark Knopfler) para ver como aquele material bruto será dilapidado
ao vivo, na frente das pessoas. Uma das coisas mais mágicas que a música torna
possível é essa visualização que a pessoa tem de uma determinada canção que
ganha uma nova forma, corporificada e remodelada tal qual vaso de barro. À
medida que caminha cada turnê essas formas se cristalizam, por vezes restando
uma sensação – comum a todos, eu acredito – de se acostumar com a beleza de uma
coisa até que ela se torne cansativa. Ao comprar ingressos para os shows de
2019 eu sabia de antemão que veria um show de uma beleza cansada, então não
criei expectativas enormes, até mesmo porque a “virgindade” eu já havia perdido
nos shows de 2015. Dessa vez a expectativa se construiu em torno da ideia de
despedida. Das turnês, dos palcos, de Lisboa, da Espanha. Eu fiz questão de me
manter por fora do que acontecia nos primeiros shows dessa turnê, justamente
para que pudesse me surpreender, eu queria descobrir cada música no calor da
hora, nos seus primeiros acordes. Mas a única coisa que eu sabia previamente, e
que estava “caindo de madura”, é que Mark estava a se despedir dos palcos
estrangeiros e (nem tão) longínquos de seu jardim inglês, onde se espera que
venha a fazer mais apresentações esporádicas no futuro. Então minha emoção
extra partia desse ponto: como seria o “até nunca mais” de um artista com 4
décadas de carreira e mais de 200 músicas originais de repertório pessoal? Qual
seria a seleção, as palavras usadas, os recortes? Guardem esses
questionamentos, mais tarde serão retomados nesse relato, pois foram
pensamentos que eu mantive constantemente durante o show de Lisboa – a
qualidade do que eu veria e ouviria passaria necessariamente por esse filtro.
Um último detalhe antes de passar ao repertório: como em
2015, fui acompanhado de minha esposa, que não é fã de Mark Knopfler, nem perto
disso, mas que sabe apreciar a boa música. Ela me permitiu uma contraposição
fundamental para ancorar meus pensamentos quanto ao show, pois um fã deve
aprender a desconfiar de seus gostos e ouvir a opinião de quem não apresenta
qualquer vínculo ou necessidade de defender ou elogiar seu artista. Quando o
show ficasse monótono, perdesse o ritmo, seguisse por um caminho autista,
deixando o público de lado, eu saberia. Mesmo que 100% de mim estivesse focado
e envolvido no show.
Então vamos ao que interessa.
As luzes se apagam, menos no palco. Surge uma pessoa e o
público solta o tantas vezes antecipado e esperado grito de euforia pelo que
vai começar. Por causa da excitação a gente nem se importa que aquela pessoa
seja um tiozinho com terno da bandeira do Reino Unido, a anunciar de uma forma
teatralizada e patética que o show vai começar. Eu sei quem é esse senhor de
terno, por ser fã eu conheço essa tradição, espécie de piada interna da equipe
que viaja junta nas turnês. Mas pra quem não é fã aquilo não tem graça nenhuma,
não funciona. “Ainda esse cara?”, ouvi do meu lado. Foda-se, vai começar, o
coração não cabe no peito e os tremelicos no estômago seriam indisfarçáveis,
não fosse o fato de todos os olhos estarem voltados para a banda que toma suas
posições a acenar. Mark entra com uma mão no ar e a outra na guitarra mais
linda que você já viu na vida. Uma espaçonave de um reluzente azul acinzentado.
A animação do público é contagiante. Nossa imaginação já vai longe, pensando
nas notas que Mark vai tirar daquele objeto. Mas em 5 segundos esse clima de estranhamento
e ansiedade se desfaz. Sobram os músicos estáticos sob a seção rítmica de uma
música que eu imediatamente reconheci como Nobody
Does That, do álbum novo, mas com a qual boa parte do público não sente
qualquer conexão. O efeito amortecedor é ainda maior porque é início de turnê,
é início de show, é uma canção que aqueles músicos ainda não tocaram muitas
vezes. A hesitação é grande demais e se impõe. Os volumes não estão bem
regulados ainda, não se ouve muito bem a voz de Mark, que sussurra a letra, ao
passo que a guitarra mágica não faz qualquer diferença, não se faz ouvir. As
palmas não duraram 15 segundos, já se veem pessoas sem saber o que fazer com a
mãos, todos se sentam, alguns começam a mexer nos celulares depois de tirar as
primeiras fotos. A música de introdução ao show demora pra engrenar. E eu ali,
completamente empolgado, como uma criança no circo, à par e imune ao efeito
amortecedor. Já fui fisgado no ano 2000, pra mim é tarde. Mas havia pessoas ao
meu entorno, incluindo minha esposa, que reagiam mais aos fraseados dos metais,
distribuídos aqui e ali pela música, do que à magia de que eu sabia Mark ser
capaz de espalhar, se quisesse. É importante destacar esse papel de renovação,
de despertador, que a seção de metais trouxe pro show. Termina Nobody Does That
e me ocorre um pensamento ruim: Mark geralmente toca duas ou três músicas (no
máximo) de cada álbum novo nas suas respectivas turnês (péssimo hábito, na
minha opinião). Então aquilo significava que sobravam uma ou duas apenas, e isso
de um repertório riquíssimo: será que ainda veremos “One song at a time”, “Just a
Boy away from home”, “Nobody’s Child”,
“Good on you son”, entre outras?
Tenho certeza de que fui o único a pensar nisso naquele momento, e talvez em
todo o show. Tenho que carregar comigo essa tentação de ser pessimista, de
sempre pensar em como as coisas poderiam ser melhoradas, mesmo sabendo que eu
mesmo não faria algo tão bom pra começo de conversa. Enfim, eu poderia me
contentar com o privilégio de estar ali, de poder apreciar o show, de ouvir uma
música nova, inédita pra mim. Mas eu já estava me preparando pra me decepcionar
com as escolhas de Mark, algo que me acompanha no decorrer das diferentes
turnês. É o outro lado da moeda. No fundo eu quero que as pessoas tenham suas
cabeças explodidas pela qualidade, pela arte, pela beleza e melancolia da obra
de Mark assim como acontece comigo, eu quero que os outros também percebam toda
essa potência. Quero compartilhar.
Mas começa a segunda música e já não tenho qualquer dúvida
de que não vai ser agora que isso vai acontecer: Corned beef city. Pois é. Corned beef city. Por que raios essa música
está num show de despedida dos palcos de Mark Knopfler? O que ela canta, como
contribui para a apreciação da carreira de Mark, qual é a moral? Ninguém
conseguiu me responder ainda. O fato é que todos os elementos ainda estão lá:
guitarra linda com um som maravilhoso, intervenções dos metais que renovam o
(pouco) interesse que essa música suscita...e Mark ainda está ali, vai
permanecer ali pelas próximas duas horas, então está tudo bem. Continuo em
estado de completa entrega e excitação, 100% de mim focado em consumir o som,
acompanho cada detalhe, meu cérebro segue ligado em 220v como uma árvore de
natal. Mas quando a música terminar as pessoas já estarão um tanto quanto
ajojadas nas suas cadeiras, achando tudo muito bonito – não duvido; mas muito
confortáveis. E eu gosto daquela arte que chacoalha as pessoas e as obriga a
sair da zona de conforto. Pra todos os lados que você olhe encontrará uma
“música bonita” pra preencher o repertório de um show dele. Isso é fácil. Só
que eu já fui picado pelo mosquito da música que te comove e te arranca de ti
mesmo, agora essa é minha droga e não espero menos que isso o tempo todo. Uma
pena que eu tenha estabelecido uma barra tão alta pra pular, um critério de
exigência improvável. Uma pena que Mark tenha se transformado numa espécie de corporificação
da ideia de zona de conforto...
A terceira música vai provar que estou certo e errado ao
mesmo tempo. Sailing to Philadelphia
é magnífica, é comovente, envolve as pessoas, provoca olhos e ouvidos a
perseguir o som e as alternâncias de timbres e solos. Ela é profundamente
narrativa e nos tira do tempo e do espaço. Esse é o Mark que facilmente pula
por cima daquela barra que eu ergui demasiado alta para os simples mortais,
essa é a opção certa para um “show despedida”, e, mesmo que já tenha quase duas
décadas de vida nos palcos, ainda é uma canção pertinente e, por isso mesmo,
poderia abrir esse show. Salvaríamos 10 minutos para “desperdiçar” em outras
escolhas, teríamos mais tempo pra grandes surpresas – muitas das quais ainda
estariam por vir. Como comprovação disso, olho para minha esposa mais uma vez,
só que agora ela tem os olhos brilhando enquanto bate palmas. Em resumo, o que
tivemos até aqui já teria me levado feliz de volta pra casa, já foi algo
fantástico e que valeu o ingresso. Mas peça a um fã para comparar esse início
de show com o que poderia (sem qualquer esforço sobrenatural) ter sido. De
novo, os dois lados da moeda. De novo a parte que falta ao som para virar arte:
potência! Sabendo que Mark toca ao vivo apenas aquilo que lhe apetece (e sendo
eu mesmo um amante das guitarras e dos violões), a única resposta possível para
esse dilema é que Mark escolhe tocar aquilo que ele acha divertido tocar. Corned beef city pode até ser prazeroso
de tocar (eu não acho), as mudanças de acordos, o uso do slide, a levada que se
assemelha ao ruído do trem...Mas apenas o fato de empunhar uma Danelectro e
optar por cantar sobre uma cidade sem grandes atrativos, deixando de lado a
possibilidade de oferecer ao público a inédita Just a Boy away from home, que explora muito melhor as qualidades
da guitarra combinada ao uso do slide e que é uma verdadeira lição sobre a apoteose
da vida vista em retrospectiva? Se houvesse alguma alternância dessas músicas
repetitivas com outras novas ao longo da turnê, como Mark fez em 2013, por
exemplo, eu confesso que abandonaria esse argumento. Mas a verdade é que, no
momento em que escrevo essas linhas, a turnê já está no seu terceiro mês, e o
repertório segue respirando com dificuldade, abafado pelo gesso e gaze - vale
lembrar que Why Aye Man tomou o
lugar de Nobody Does That nos shows
ao longo da turnê. Se é uma mudança bem-vinda ou suficiente fica a critério de
cada um, eu particularmente gosto do máximo de variação possível nos setlists.
Não gosto da sensação de ter visto um show com estrutura idêntica a um outro em
Berlim, Zenith, Barcelona, etc. O público gosta de se sentir especial, gosta de
ouvir algo só dito ali, pra ele, naquele dia, como um segredo, uma confidência.
O que é um fã senão um confidente?
A quarta música me deu um soco no estômago e o público
inteiro sentiu. 10 mil cérebros explodidos ao mesmo tempo por uma sequência de
3 ou 4 notas. Quando surgem os primeiros acordes de Once upon a time in the West dá pra dizer que o show, de fato,
começou. Vê-se que a banda está aprendendo a tocá-la em novos moldes, há uns
desencontros na execução da introdução (repetidos no final). Mas não interessa.
Para o fã esse momento é mágico, e quando ele é mágico para muitos fãs ao mesmo
tempo, aqueles que não são fãs (e que talvez nem conheçam a música) acabam se
contagiando, eles percebem que estão diante de algo especial e se tornam
crianças de novo, a investigar o que se passa por que também querem fazer parte
daquilo. E num estalo a música já está no fim, eu seco uma lágrima daquelas de
cantinho de olho, que não chegam a escorrer pela cara, mas que não adianta
esconder: a arte em toda sua potência fez sua aparição neste 30 de abril, já
não era sem tempo! Nessa hora o show começa a te operar: você ainda não
resolveu a dor do primeiro corte e o médico já começou a espalhar outros pra
todo lado, emendando as dores umas nas outras, revezando os instrumentos
espalhados pela mesa de cirurgia. Então o que passo a analisar não foi fruto da
reflexão propriamente dita durante o show, mas um relato que mais parece o
catar de fichas que foram caindo com o tempo e pelo caminho. Um dessas fichas
diz respeito à “marcha” ao fundo dos acordes da introdução. É algo genial, confere
uma expectativa para o que vem pela frente ao mesmo tempo em que encaminha uma
interpretação um pouco diferente da que estamos acostumados a ver sobre essa
música. O embrutecimento dos seres humanos nas grandes cidades, ironicamente
pelas circunstâncias da vida moderna, ganham a coloração militar, e o rasgado
da guitarra Gibson Les Paul com exatamente a perfeita quantidade de distorção
(coisa que poucos sabem fazer) deixaram a música renascida, jovem de novo. O fã
sente que as escolhas certas foram feitas, escolhas essas que parecem agora tão
óbvias, mas que ninguém teria pensado antes. Também o rodízio de solos com as
flautas e metais deixam o público tonto, e aquele embrutecimento todo que a
música canta e critica é dissolvido numa aura que eu só consigo descrever como
“espiritual”, algo etéreo e envolvente, rasgado aqui e ali pelo timbre da Les
Paul. Violência e beleza. Fascínio e repulsa. Forma e conteúdo. Era uma vez no
oeste...
A palmas e gritos ao fim dessa música vieram com uma ideia
provocativa: estaria Mark reapresentando Once
Upon a time in the West como forma de “reler” sua obra e empacotá-la num
show de despedida que de alguma forma represente os álbuns da carreira toda?
Será que o setlist foi pensado para oferecer um pedacinho de cada álbum e,
assim, despedir-se de Portugal (e de outros palcos de outros países) com um
grande “este sou eu” - e já me passa pela cabeça a mensagem por trás de This is us...e agora a ideia já se
torna irresistível, começo a pensar se teremos pelo menos uma música de cada
álbum no repertório de uma única noite. Seria fantástico! Começo a torcer para
que isso aconteça e – como veremos – a cada música que se segue essa esperança
fica mais forte.
Esses pensamentos tomam um certo tempo e transbordam por
toda a introdução de Romeo & Juliet,
que nunca saiu dos shows de Mark e, por isso, já não provoca em mim muito
entusiasmo. Por isso fui tão afortunado de estar acompanhado nesses shows,
porque minha esposa me mostrou claramente a importância dessa escolha para o
engajamento do público no show. O não-fã fica completamente pirado nessa
música, e nem a mudança de instrumento (violão National da clássica capa do
álbum Brothers in arms foi trocado
por um Dobro que, de longe, não pude identificar, e também não importa muito
porque funciona tanto visual quando sonoramente) pode acordar o público daquela
tradicional hipnose que R&J sempre causa ao vivo, independentemente das
diferentes roupagens e arranjos que ela já apresentou na sua longa vida. E
falando em arranjos, as próximas duas músicas do show reforçaram em mim a
admiração que eu tenho pela capacidade de Mark de turbinar uma música quando a
apresenta ao vivo, especialmente por se fazer rodeado de grandes músicos. My Bacon Roll e Matchstick Man são mais duas que vieram do álbum novo – não são nem
de perto as melhores do álbum e, de certa forma, baixariam bastante o nível de
engajamento do público com o show, não fosse a forma como Mark as retrabalhou. My Bacon Roll, uma música que não
merece estar num show “de despedida” e que peca por ser pastiche de um modelo
tornado clássico por Mark Knopfler – o de construir músicas-retrato de uma
pessoa amarga pelo registro das suas observações mesquinhas do mundo. De fato, Mark introduz My Bacon Roll, em Portugal, com uma
explicação: “this is the kind of guy that doesn’t know better than to complain
about life. It’s the brexiter”. Por mais que eu tenha adorado essa forma
sutil de criticar esse conservadorismo podre que tomou conta do país de Mark (e
de tantos outros), custo a entender como essa canção ficou tão fraquinha, tão
sem sal, tão asséptica na versão gravada em estúdio e lançada no álbum. O
fraseado é ruim e se encaixa mal nas estrofes, a guitarra está preguiçosa, a
tentativa meio estereotipada de ser da família de Money for nothing... enfim, em outro momento posso me aprofundar
nos motivos que me levaram a não gostar dessa música durante a apreciação do
álbum, e também entendo as pessoas que gostaram. Ela certamente não é ruim de
ouvir. Só não concordo com as escolhas que foram feitas nela, ela tem potência
de ser outra coisa, de ser melhor, de não ser preguiçosa. Daí minha surpresa
positiva quando, no show, ela vem cheia de energia, cheia de propósito. O final
é apoteótico e ela funciona, mesmo não sendo “uma das conhecidas do Dire”. A
mesma sensação se repete com Matchstick
Man, que não passava de uma “música extra”, na melhor das hipóteses –
inclusive plágio dele mesmo, na medida em que repete toda estrutura e acordes
de Heart of Oak, essa sim uma grande
contribuição à obra de Mark, algo que veio pra agregar e continha inspiração. Matchstick Man é mais do mesmo, é o
Mark cantando sobre como ele gosta de guitarras e fez de tudo pra “dar certo”
na carreira musical. “You really gotta want it”, como ele se repete em inúmeras
entrevistas. Sem dúvidas que a música merece estar num “show de despedida”,
pois fala da trajetória do artista, seus sacrifícios, etc. Mas já nos primeiros
acordes me bateu um descontentamento por mais essa escolha questionável, dentre
tantas outras músicas inéditas que literalmente pediam pra ser tocadas ao vivo...dentre
tantas músicas magníficas do álbum novo... Mas como num show do Mark não
poderia faltar o componente celta e as gaitas de foles, Matchstick Man mergulhou no caldeirão cultural em que Mark sempre
bebeu e saiu dali diferente, saiu melhor, potente. É uma das músicas que mais
mostra quem, de fato, é o músico cada vez mais velho e lento que está ali
diante de um público hipnotizado de gente igualmente cada vez mais velha e
lenta. Essa sonoridade nos faz viajar, e o show já não acontece aqui e agora.
Com um pequeno artifício que eu nunca vou entender completamente ou ser capaz
de reproduzir, Mark bota todo mundo numa espécie de sono nostálgico que muito bem
poderia ser uma nave ou uma nau. O som embala essa viagem e, enquanto a música
se aproxima do fim, as pessoas se reconectam com suas raízes, seus passados
ancestrais e indizíveis. Esse lance celta que o Mark tira da manga é um dos
motivos de ser impossível para um fã ficar alheio ao que ele faz e grava, pois
já é tarde demais, já estamos viciados e queremos sempre mais uma dose. As
flautas se silenciam e ancoramos às margens da realidade de novo pra bater
palmas e limpar os olhos, de novo. Dessa vez vejo mais gente compartilhando
esse espírito, e começa a cair a ficha das pessoas não-fãs daquilo que eles
vieram testemunhar no show e não sabiam. Até o final do show, quem não se
comove uma ou duas vezes, boa gente não é.
A próxima música do show foi, para minha surpresa, Done with Bonaparte. Quando os músicos
se perfilaram todos no palco e, de longe, eu reconheci um acordeão pendurado no
peito de Jim Cox, já sabia que se tratava dessa velha conhecida, mas eu não
imaginava que ele voltaria a essa canção depois de deixá-la de lado por um par
de anos. Mark apresenta a banda do mesmo jeito de sempre, mesmos elogios desde
1996. Aplaudi muito todos aqueles músicos, é claro, mas senti uma emoção especial
quando Mark fala do Richard Bennett. Ano passado eu arranjei uma conta no
Spotify e lá estão todos os discos desse cara, com temas instrumentais muito
variados em estilo, pouco variados em termos de qualidade: tudo da mesma
excelência. Então foi muito legal ouvir o som de seu bazooki na introdução em
dueto com Mark, antes de toda a banda participar. Essa música foi tocada de uma
forma muito padrão em Lisboa. Em La Coruña teve um toque especial no trecho em
que ele canta “Spanish skies, egyptian sands”. Danny Cummings até apontou pro
céu, pra delírio da torcida. E mais pra frente na turnê, pelos vídeos de fãs
postados no youtube, eu reconheci que o andamento da música mudou, não mais
aquela levada que lembra a marcha de uma tropa de soldados, mas sim uma balada menos
exigente, com a caixa soando apenas na metade dos tempos, um trabalho mais
elaborado na bateria conferiu um certo “funky” à canção, levando as pessoas
inclusive a se movimentar com o corpo de uma maneira diferente ao longo da
performance. Deve ter sido obra do Ian Thomas, provavelmente surgiu em algum
ensaio ou passagem de som durante a turnê. Isso deu um gosto especial pra essa
música, como é fácil comparar pelo vídeos no youtube. Uma pena que em Lisboa e
La Coruña eles ainda não haviam feito essa mudança, então, sinceramente, não
tem muito o que comentar sobre Done with Bonaparte. Já é 2019, então eu também
já estava “done with” Done with Bonaparte.
O show, porém, estava longe de me causar qualquer desilusão.
E eu ainda não tinha a mínima ideia do que ainda estava por vir. É verdade que
houve certa frustração com algumas escolhas até aqui, com as coisas repetitivas
de sempre, mas pra cada uma delas houve retorno dez vezes mais prazeroso. Prova
disso foi a surpresa que eu tive com a próxima música, que eu reconheci no
segundo acorde. Já saí gritando o nome e o povo todo em volta de mim deve ter
achado que eu era muito maluco ou muito chato, provavelmente os dois. Heart Full of Holes é uma das minhas
músicas prediletas da carreira do Mark. Cada álbum sempre me traz uma música
preferida com a qual eu me sinto de alguma forma conectado. No caso do álbum Kill to get crimson, de 2007,
adotei justamente Heart full of holes. Talvez pelo tom melancólico da
narrativa, a nostalgia evocada pela ideia da música em primeira pessoa de quem
se volta para suas lembranças e escolhas na vida, pensando “como eu sobrevivi
até aqui?”. A música foi majestralmente tocada, ainda mais se levarmos em
consideração que a letra é longa - Mark até se atrapalhou pra se lembrar de
alguns trechos. Os refrões são de uma riqueza de timbres muito rara, uma vez
até uma pessoa ouviu que eu escutava essa música em alto volume e comentou que
parecia uma composição renascentista. Confesso que não sei como é um composição
renascentista, mas aquilo fez sentido imediatamente pra mim, pois as linhas
melódicas, simples em si, complementam-se pra criar um aspecto complexo e
sofisticado...é uma música que parece que consumimos com outros sentidos, não
só com a audição. Percebi já no final de música que Jim Cox não estava mais com
o acordeão no peito, o que me deu uma sensação de estranhamento. Por que deixar
para os teclados de Guy Fletcher o som de acordão sintetizado em vez de tê-lo
completo e original pelas mãos do (é discutível) melhor músico da banda?
Calculo que ficou ao cargo de Jim fazer a “cama” detrás de seu piano deixando
espaço para a principal mudança: a introdução dos metais na melodia de refrão.
De fato, é possível reconhecer essas intervenções de piano aqui e ali por toda
música, só é preciso estar mais atento. Quando terminou eu estava completamente
convencido de que Mark estava fazendo uma releitura de toda sua obra pela
escolha pontual de músicas de todos os seus álbuns. Eu tinha certeza de que era
esse o motivo dessa raridade no setlist. Por que outro motivo ele teria ido
buscar uma música “obscura” de um álbum praticamente esquecido da carreira? Infelizmente
essa forte suspeita não se confirmaria, mas nesse momento ela me deu um impulso
extra de emoção. Outra coisa infeliz foi que essa música ficou de fora do show
de La Coruña, então não pude recolher mais impressões dessa performance ao
vivo. Eu tinha me preparado com mochila e câmera pra filmar essa música nesse
segundo show, então é como diz a letra:
Well, if we go to heaven, and some say we don't
But if there's a reckoning day
Please God, I’ll see You and maybe I won't
I've a bag packed to go either way
A banda mais uma vez se mexe toda no palco e preparam os
canhões de luz pra pegar a introdução da próxima música, que seria toda feita
pelos metais. Começam os acordes de uma das músicas instrumentais que Mark
compôs para filmes, She´s Gone, que
duraria pouco mais de um minuto; mas o público mais fiel já sabia que era
apenas para antever o que viria a seguir, um dos maiores clássicos do Dire
Straits, a genial e imediatamente reconhecível Your Latest Trick, sempre lembrada por aquele saxofone meio
“meloso”. Eu já havia escutado ela na turnê de 2015, não era novidade pra mim,
mas é sempre uma emoção muito grande testemunhar uma obra musical nascida em
1985, mesmo ano que eu, indelevelmente inscrita na história da música mundial.
Foi também uma boa oportunidade pra ver o impacto dela no público não fã, que
fica mais empolgado quando reconhece um clássico como esse. Todos cantam juntos,
os casais se abraçam e pegam o movimento que o ritmo da música sugere na gente.
Então foi mais um grande momento de contemplação, de olhar para os lados e
aproveitar o momento, dar um descanso pro cérebro. Esse clima envolvente de
relaxamento foi importante pra contrabalancear com os momentos mais enérgicos
que a plateia passaria durante Silvertown
Blues, próxima música do show e mais uma grande surpresa. Fiquei extasiado
nesses 6 ou 7 minutos seguintes, de queixo caído mesmo pela forma como essa
música funciona ao vivo. Foi bom mais uma vez perceber o estímulo que a
guitarra do Mark causa nas pessoas, e aqui ela deita e rola. O solo final se
estende um pouco mais que a gravação lançada no já longínquo primeiro ano do
milênio. Já nem saberia dizer quantas vezes eu ouvi essa música quando comprei
o CD - meu primeiro álbum do Mark Knopfler. Dali em diante nunca mais deixei de
comprá-los logo que saíam, acho que foi o começo de tudo pra mim. Já fazem
quase duas décadas, perfazem a totalidade da minha vida adulta, então dá pra
dizer que eu, junto com muitos outros fãs espalhados pelo mundo, ansiava por esse
momento há muito tempo. Foi emocionante perceber que se tratava de um live
debut não só pra mim, mas pro mundo todo, já que ela estreava mesmo nessa turnê
de 2019, mais precisamente em 25 de abril em Barcelona (mas eu não sabia, como
já mencionei no início do relato). ***Não estou contando a gravação de uma
passagem de som em Munique durante a turnê de 2001.
Essa música eu fiz questão de filmar no show de La Coruña,
até pra compensar que não consegui gravar Heart full of holes, então aproveitei
mesmo que estava com a câmera na mão. Eu sei que essas coisas sempre vão parar
no Youtube de qualquer forma, então prefiro manter os olhos no palco e as mãos
longe do celular e das câmeras. Mas nesse caso específico eu fui muito feliz
com a escolha de filmar, porque em La Coruña o público parece ter sido pego de
surpresa, as pessoas ficaram mesmerizadas e baixaram os celulares, eu acho que
fui o único que filmei essa parte, dentre as pessoas das primeiras filas,
então, quando a música terminou, um rapaz espanhol se aproximou de mim e me
pediu pra falar comigo ao final do show pra trocarmos contatos porque ele
queria aquela gravação. Mal sabia ele que meu celular tem uma câmera horrível e
que não ficaria tão bom; ainda assim, foi a oportunidade de conhecer um fã
espanhol e trocar uma ideia rápida depois do show. Um dia, quem sabe, volto à
Espanha e visito o Jesus, morador de Burgos que, como eu, viajou um bocado pra
ver e ouvir Mark Knopfler.
Quando termina Silvertown Blues o público fica um tempo
extasiado, aposto que as pessoas não esperavam que uma música tão desconhecida
(se não é um clássico do Dire metade da plateia já não conhece bem) arrancaria
tantos suspiros, mas também se começa a sentir um certo cansaço, as pessoas
estão impacientes pra ouvir Sultans of Swing
ou Money for Nothing – ou, no meu
caso, mais músicas do novo álbum. O silêncio é quebrado com uma introdução
alucinante de trompete que remete imediatamente à música caribenha/cubana.
Começaria Postcards from Paraguay,
uma constante nos show de Mark desde 2007 durante a Kill to get Crimson
promotion tour 2007, mas é uma das que eu considero sempre bem vindas. Em
diversas ocasiões as pessoas próximas de mim se identificaram com ela e, mesmo
não sendo fãs como eu, sempre repetiam que essa música era muito boa ou “a
predileta” delas. Uma coisa é certa: ela traz muita animação, ela dá vida às
coisas e pessoas, que começam a se mexer e a sorrir. Sempre achei muito curioso
como um velho inglês sem qualquer malemolência ou propensão para a música
dançante resolve compor algo como Postcard from Paraguay – e acerta tão bem no
ponto. Nesta turnê ela está no seu auge, os metais estão no seu território, a
percussão de Danny Cummings deixa ela ainda mais próxima do clima tropical.
Quase parece que alguns músicos da banda vão se mexer e tirar um pouco os dois
pés cravados do chão... mas isso já seria demais para um pequeno bando de ingleses.
Inicialmente eu não fazia muita questão de ouvir essa música, preferia mil
vezes que Mark tivesse optado por tocar Heavy
Up, música do novo álbum em que os mesmos elementos poderiam ser
explorados. Mesmo assim, Postcards foi um sucesso retumbante – os últimos dois
minutos poderiam durar uma hora tranquilamente e ninguém iria achar ruim,
sobretudo devido aos solos atropelados em revezamento uns por cima dos outros,
ao melhor estilo Buena Vista Social Club. Ali os músicos disputam o espaço e a
atenção, parecem competir entre si, mas em nome da elevação da música, e não
pra aparecerem ou fazerem figura de grandes virtuosos. Finalmente a música
acaba, e quem ainda não tinha percebido que estava presenciando algo
espetacular, agora sente a ficha cair: mais importante que Mark é a banda, e
mais importante que a banda está a Música, com M maiúsculo, a música como
conceito, a música como Arte - a saber, a sucessão e o uso de estilos musicais
e timbres e sabores, cada uma na sua devida medida e proposta, sem que se saiba
exatamente qual é o ritmo musical principal do show, e quando você pensa que
vai ouvir Blues, Mark te dá música celta, depois parece que vem um rock com
solos de guitarra e a coisa termina num R&B cheio de pitadas de Soul e um
pouco de Funk norte-americano. Daí você pensa “Ah, então é tudo mais ou menos
Pop/Rock”, e logo depois você passa 5 minutos no Caribe.
Ao menos era essa a sensação que eu tinha quando olhava o
rosto das pessoas e imaginava o que será que elas estão pensando, se estão
gostando do show como eu, etc. Durante os breves 2 segundos de silêncio antes
da próxima música eu dou um grito lá de trás da plateia: “Sul-américaaaaaaa”.
Não me contive. Queria marcar uma presença ali no meio dos europeus que sempre
tiveram todas essas coisas mais ou menos em sua órbita. Queria dar um pouco da
minha perspectiva, demarcar meu território de origem que tantas vezes já havia
visto que era invisível e insignificante aos olhos do “europeu médio” – aquele
que ainda está discutindo qual país europeu teve o maior império (moderno ou
antigo, tanto faz).
Não deu tempo de ver a reação das pessoas ao meu singelo e
ao mesmo tempo pretensioso grito, porque Mark iniciava de surpresa a primeira
estrofe de On Every Street, única
música do álbum de mesmo nome lançado em 1991 que Mark ainda apresenta na
carreira solo mais recente (Calling Elvis ele levou até o início dos anos 2000,
The bug ficou em 1996, o resto só ganhou os palcos na turnê de 1991-1992 e olhe
lá). Essa música ativou a nostalgia do público novamente, já preparou minha
imaginação para o que poderia nascer de dentro dela com essa nova formação, ao
mesmo tempo em que pensei: está o Danny Cummings, daquela turnê, está aí mais
uma música de um álbum diferente, inclusive remetendo ao On The Night, “acho que
sim, Mark está apresentando pelo menos uma música de cada álbum de sua carreira
como uma espécie de lembrança restrospectiva de tudo que já fez”. Fiquei feliz
com isso, porque os fãs sabem que nem Mark, nem as pessoas responsáveis pela
produção e lançamento de seu material, têm a mínima perspectiva totalizante do
que foi a carreira dele, de tudo que ele compôs, de seu lugar na grande cadeia
de artistas da música popular do século XX e início do XXI. Falta – e muito –
uma valorização mínima desse aspecto, ou mesmo um reconhecimento próprio de que
há mais coisas pra minerar de dentro dessa grande mina que é seu catálogo,
coisas que não precisam ter reconhecimento porque eu, o fã chato, gosto disso e
quero isso, ou porque há dinheiro e consumo a serem gerados a partir disso. É
porque vale a pena mesmo, nos ajudaria a ver a música com olhos menos
mesquinhos de quem quer competir em vez de agregar. Pensava que essa visão
própria do lugar que Mark ocupa poderia estar presente neste show que eu estava
a assistir, seria uma grande forma de encerrar essa parte da carreira (as
turnês). Uma maneira não egocêntrica nem impositiva de dizer, “fiz um pouquinho
de tudo, me inspirei aqui e ali em coisas muito variadas, não negligenciei nem
subestimei nenhum aprendizado com artistas e ritmos absolutamente diferentes e
variados entre si, consegui criar uma certa identidade a partir disso e não me
acho melhor que ninguém, compus coisas de qualidade questionável, mas em grande
maioria eu acredito que acertei, e isto o provam as milhares de pessoas que
esgotam os ingressos para os shows em dezenas de países do mundo”. Projetei
toda essa reflexão como se fosse eu ali, como se coubesse a mim escolher ali
mesmo no calor do momento o melhor jeito de encerrar uma carreira que por
alguns momentos julguei ser a minha, mas que eu nunca tive nem terei. Essa
projeção fez eu aproveitar muito pouco da música On every street, como a essas
alturas a pessoa que está lendo esse relato já deve ter percebido, porque ela
também embarcou comigo nessa reflexão e esqueceu da realidade do show. Quando
volto a mim a música está no fim, ela termina de uma forma muito menos virtuosa
e espetacular do que a turnê de 1991-1992 (Paul Franklin mandou lembranças),
então eu confesso que eu bati umas palmas meio burocráticas - algo não
merecido, mas acontece. Minha memória dessa música, portanto, existe mais pela
repetição em La Coruña e depois no Youtube do que pelo saborear nota a nota em
Lisboa.
Segue o show, já passada uma hora e um quarto, com a
fantástica Speedway at Nazareth. Há
quem não goste mais de ouvir essa música, de tantas vezes que ela já foi tocada
nas turnês desde 2000. De fato, se eu pudesse escolher teria pedido qualquer
uma do novo álbum, que eu estava escutando sem parar naqueles dias -
provavelmente pediria One Song at the
Time, justamente porque me parece que tem a mensagem que melhor combina com
a ocasião. Se eu fosse me inclinar mais pelos solos de guitarra, pediria Just a Boy Away From Home ou Trapper Man. No meu mundo ideal poderia
vir a minha música predileta do novo álbum: Pale Imitation, uma B-Side. Mas como estamos em um show de Mark
Knopfler e a zona de conforto é o estilo de vida dos ingleses, vamos de
Speedway at Nazareth, é o que temos pra hoje. Ainda bem que o “mais do mesmo”
de Mark segue uma regra geral de expectativa altíssima. Não é preciso ser fã
pra se emocionar com os acordes, a letra e o fechamento dessa música. Ela nos
leva a dar voltas num circuito como um carro de corrido num dia perfeito, em
que o piloto “não cometeu nenhum erro”, e isso basta – pouco importando a
posição final no grid. A verdade é que Speedway at Nazareth é um tratado
fonográfico sobre a natureza humana. O tema das batalhas automobilísticas e as
pequenas grandes vitórias de pessoas comuns fantásticas já foi muito explorado
musicalmente, com destaque para George Harrison
- ele mesmo um fanático por automobilismo – e Rush. Um dia ainda
pretendo fazer uma playlist só com músicas sobre esse tema, acredito que nunca
foi devidamente analisado por aí. Então, voltando ao show, acho que Mark
manteria Speedway eternamente nos seus shows, principalmente porque tocá-la na
guitarra é algo muito divertido, dá grande prazer botar as notas, uma em cada
curva, e levar o carro pra linha de chegada. É tão legal que normalmente as
pessoas recomeçam a tocar a música logo que acaba o solo final, como um carro
que cruzou a linha de chegada mas ainda vai dar mais uma volta. Não adianta, as
pessoas têm razão quando dizem que é uma música que já está no setlist há muito
tempo, mas ela sempre terá seu valor e vai funcionar sempre. Ainda mais
enquanto Mark estiver rodeado das flautas, violinos, trompetes e pianos pra não
deixarem sua Gibson Les Paul correr sozinha pelo traçado da pista.
Com Telegraph Road
termina a primeira parte do show, aquela que supostamente deveria ser o show
“oficial”, antes do encore (ou bis), que as pessoas hoje em dia planejam como
parte do show. Essa pausa pra descanso é bem vinda, e não só pra banda.
Acontece que é preciso muito tempo pra se recuperar do que a guitarra faz em
Telegraph road. É quase inacreditável mesmo. O efeito de hipnose é geral, você
olha em volta durante o solo de Telegraph Road e as pessoas parecem zumbis, nem
piscam. A música toda tem uma certa aura tautológica, mágica até; os momentos e
climas vão se sucedendo, a história da civilização vai sendo cantada e musicada
quarteirão por quarteirão, estrofe por estrofe, palmo a palmo da estrada que,
até mesmo por ser descrita baseada em eventos reais, confere vida à canção e...
Quem estou querendo enganar? Estou aqui chovendo no molhado, descrevendo uma
coisa impossível de descrever, pois a música existe justamente por isso – pela
impossibilidade de se colocar em texto essas coisas sem matar uma parte da
realidade delas. A música, pelo contrário, evoca essas coisas indizíveis. Quem
já ouviu sabe, e quem apenas ouviu, sem dar a devida atenção, ainda não sabe o
que está perdendo e por isso eu invejo essas pessoas, pois ainda tem essa
descoberta pela frente. Não sei se vale a pena relatar mais alguma coisa sobre
Telegraph Road. Talvez a coisa mais interessante que acontece no cérebro do fã
durante essa música é como ela joga com a percepção de tempo da pessoa. A
música dura uns 13 minutos, há momentos mais calmos e suaves que parecem que
duram uma eternidade aos ouvidos de quem prefere a parte “não progressiva”, mas
ao mesmo tempo esses minutos parecem segundos, porque tudo passa muito rápido.
Mas quando já acabou você ouve a música mentalmente em perspectiva e se dá
conta da enormidade e atemporalidade das coisas cantadas pelas duas vozes de
Mark (uma pela garganta, a outra na ponta dos dedos), e nessa ideia o tempo se
congela. Tudo se resolve no transe do solo final e no aparente descontrole de
todos os músicos, absolutamente concentrados no que estão fazendo, ensimesmados
na performance, mas jamais isolados. Telegraph Road é um todo vivo que se
insinua devagarinho e te atropela no final. Quando o transe acaba as pessoas
dariam um rim ou venderiam um parente pra começar tudo de novo. Infelizmente
Mark não tocou ela no show de La Coruña, que começou uma hora mais tarde que o
normal e foi um dos mais curtos da carreira dele. Aparentemente, como descobri
depois, estavam todos queimados no tempo pra pegar o avião pra cidade onde
seria o próximo show, no dia seguinte. Sacrificaram essa parte do transe, e o
público percebeu. O desapontamento de quem percebeu essa ausência foi
impossível de esconder e me marcou bastante. Talvez essa seja a forma mais
fácil de entender o que significa ouvir Telegraph Road ao vivo: quando não
acontece não tem o que colocar no lugar, vai ficar um vazio ali.
Os vários membros da banda saem de seus lugares. Mark
desenrola a alça de sua Pensa Suhr de seu peito e levanta a arma do crime pra
todo mundo ver. O sorriso de contentamento é geral, até dói um pouquinho no
canto dos olhos porque o músculo não segura mais. E tenho certeza que esse
fenômeno acontece no rosto dos músicos também, é uma sinergia ao som das palmas
e assobios, que parecem não significar o tradicional “parabéns, estava ótimo,
vocês são bons”, e sim um “muito obrigado por isso que vivemos juntos aqui e
agora. De verdade.”
Quando a luz apaga e a banda some eu voltei a olhar pra
minha esposa depois de um tempo em que esqueci que havia mais gente ali.
Conversamos e eu logo voltei pros meus cálculos. Recordo-me vivamente de pensar
que faltavam uma música do primeiro álbum (1978), uma música do Get Lucky
(2009) e o primeiro álbum solo, feito no meio dos anos 80 para o filme Local
Hero (1983). Antes de o show voltar eu já tinha bolado toda apoteose final:
Mark voltaria com Sultans of Swing,
estourava os miolos de todo mundo (fã, não fã, indiferentes, todo mundo) com
ela. Daí puxaria Piper to the End
pra lembrar o Get Lucky e fazer marmanjos chorarem, e terminaria com a
tradicional Going Home, apoteótica
como poucas músicas que eu conheço, tanto que cabe tão bem em formatura, como
velório, como entrada de time de futebol em campo, etc. Onde quer que você
ponha essa música pra tocar ela vai criar um efeito de estufar o peito e sentir
que a vida vivida valeu a pena. Ela é instrumental, mas todas as palavras para
montar o significado da vida estão ali.
Infelizmente não acertei meu palpite e não teve nem Sultans of Swing (pecado máximo!) nem Piper to the End (pra meu grande
desapontamento, pois se trata da minha música predileta do Mark Knopfler. Talvez
do mundo inteiro. Sem brincadeira. EU também nem havia me dado conta até aquele
momento que eu estava errado o tempo inteiro: faltavam músicas de vários outros
álbuns, como o altamente improvável – por se tratar de um álbum em colaboração
com Emmylou Harris – All the Roadrunning (2006), e os mais recentes Privateering
(2012) e Tracker (2014). Mas enfim, sabe-se lá o que passava na minha cabeça
que embaralhava tanto assim os meus cálculos. Na hora pensei que tudo fecharia
com mais 3 músicas que eu sabia ser provável acontecer, e então a probabilidade
se juntou à minha vontade e a realidade virou o que eu quis que ela fosse.
Voltando ao show, eu esperava muito pelo momento de ouvir
Piper to the End. Ninguém, talvez nem eu mesmo, pode explicar o quanto essa
música mexe comigo. Uma pena que não rolou, era a única música que eu fazia
questão de verdade de ouvir ao vivo. Mas só não fiquei devastado com essa falta
porque outra coisa aconteceu, uma outra coisa que me surpreendeu e me lembrou
de uma lição importantíssima: as coisas que não acontecem sob nosso completo controle
são as melhores coisas da vida. Eis que a introdução de Money for Nothing começa a se ouvir (e se ver também, já que
construíram um efeito de luzes dando destaque para a bateria e a percussão). Do
escuro dava pra ver que Mark começava a se ajeitar para o famoso riff de
guitarra que tantas vezes eu ouvi e estudei pra saber fazer também, e que
certamente já tocava na cabeça de todos. Ele se encolheu um pouco pra ver o
baterista por debaixo dos pratos e entrar no momento certo. E daí é gol do teu
time no minuto final do jogo que decide campeonato. A guitarra entra mas é
impossível ouvir. O que não é exatamente uma perda, porque a gente de alguma
forma sente ela dentro da gente, primeiro porque é muito óbvio, segundo porque
é um subproduto da emoção geral do momento. Quem não é fã estava esperando essa
música porque é talvez o maior clássico da banda Dire Straits. E por isso ficou
super feliz, porque finalmente ela veio. E quem é fã já sabe que faz muitos
anos que Mark não toca essa música ao vivo, eu já nem sabia dizer qual foi a
última vez, e já nem importa muito porque ela é mesmo atemporal. Eu quase nem
acreditava que estava finalmente ouvindo aquilo saindo da fonte. Incrível como
duas ou três cordas tocadas juntas duas ou três vezes sucessivas podem criar um
efeito tão forte nas pessoas. Mesmo quem não conhecesse Money For Nothing teria entrado na onda, só pra estar em sintonia
com a reação coletiva que é apaixonante mesmo. Imagino que se o show fosse na
Argentina, ou no Rio, ou no México - ou nesses lugares onde o público é
participativo e coloca sobre si a co-responsabilidade de fazer o show acontecer
em vez de “apenas” assistir – haveria pessoas desmaiando ou pisoteadas. Ninguém
fica sentado durante essa introdução. As pessoas só começam a ouvir o que Mark
toca lá pela terceira frase da guitarra. Com o andar da carruagem as melancias
vão achando seus lugares e os ânimos se amornam e a gente começa a escutar a
voz do Mark “cantaronarrando” cada estrafe. Ainda assim os refrões e os solos e
a irreverência de Mark (uma das poucas músicas em que ele faz ou diz qualquer
coisa diferente de seu “padrão” de comportamento nos palcos) mantém o público
engajado até o fim. Mais ao final as pessoas já se acumulam de pé na frente da
plateia VIP pra o que seria a última música do show: Going Home. A realização de que vai terminar é uma coisa pesada,
mas necessária até um certo ponto. É um pouco cansativo passar por toda essa
atividade cerebral e estímulos aos sentidos. Quem gosta de gritar tem,
obviamente, um prato cheio – e isso em qualquer show. Até acho as pessoas do
público tem um respeito admirável pelo silêncio e pelo trabalho da banda, então
são poucas as ocasiões em que alguém arrisca dizer qualquer coisa, mesmo que
seja sensível a emoção geral. O entusiasmo misturado com o silêncio é uma coisa
estranha e eu fico num estado de ânsia paralítica. Deve ser por essa dualidade
incompatível que eu gosto tanto de analisar a obra de Mark, toda ela cravada
desses momentos. E talvez seja um pouco pesado demais esse auto controle do
espaço que o público se auto impõe. Um pouquinho mais de caos faria bem. Going Home vai terminando, as pessoas
vão gravando e tirando suas últimas fotos, uns mais emocionados aqui e ali já
secam as lágrimas (vi muito isso de perto do palco no show de La Coruña, mas em
Lisboa estava tão longe de tudo – e tão rouco – que apenas mantive um silêncio
de veneração e agradecimento pela experiência vivida, não tinha como perceber
esse efeito nas pessoas dessa distância real e mental tão grandes). O último
acorde se vai, Ian Thomas segura os pratos da bateria com os polegares, e
sobramos eu e minha esposa no meio da multidão. Eu ainda fiquei um tempo em vão
esperando que a banda voltasse para mais um bis. A parte racional dizia que não
havia a menor possibilidade de isso acontecer, mas o fã já tem essa parte
racional meio comprometida, e tem também aquela coisa de torcedor que acredita
na virada até os 47 minutos do segundo tempo. É uma desgraça isso, uma
verdadeira maldição. Algo que só faz sentido mesmo à luz do momento e aos olhos
de quem também demonstra seu gosto por algo de uma maneira ridiculamente aberta
e espontânea. Coisa de quem para pra pensar essas coisas que eu relatei nos
seus mínimos detalhes e aprecia esmiuçar pequenas expectativas, comparar
versões de músicas tocadas aqui e acolá, adivinhar pra onde uma apresentação
musical está sendo construída e com quem objetivos. É preciso ter pena.
Com o fim de Going
Home todos percebem que agora é hora de ir pra casa. No meu caso, seria a
pé mesmo. Daria tempo de relembrar detalhes, ver e ouvir registros porcamente
feito pela tela do telefone celular. Outras pessoas fazem o mesmo no caminho da
estação e mesmo dentro do trem. É também hora de invejar quem comprou um
celular bom de verdade pra ter registros melhores desses momentos. Ainda
levaria uns dias pra passar aquela sensação de estar pleno, de ter sido
inflado. Espero com esse relato atingir outras dessas almas coitadas que vivem
isso e não tem com quem compartilhar essa sensação ridícula porque, como eu, já
estouraram a paciência da esposa e dos amigos. Termino esse relato no dia do
último show da parte europeia da turnê. A essas alturas já sei mais coisas, já
poderia recontar algumas partes desse relato de outras formas, talvez insistir
para o aspecto negativo da falta de variação do setlist (velha bronca), ou
talvez mencionar que ao menos foi tocada So
Far Away em uma ou outra ocasião nos shows de julho. Mas faço questão de esquecer
esse lance do setlist e terminar num tom positivo, quero aproveitar uma última
chance de estimular o leitor que bravamente veio comigo até aqui: vá ver um show
do Mark Knopfler. Eu não sei se verei mais algum show dele nessa vida,
provavelmente não, mas se a sua vida se inclinar de um jeito que te pareça
possível fazer isso, se não te faltarem os recursos e a oportunidade, dê esse
presente pra si mesmo(a) e vá. Tenho certeza que você vai ter momentos
inesquecíveis e não vai se arrepender de gastar um pouco os neurônios pensando
em tudo isso que eu te contei aqui. Vá e depois me conta como foi.
Marcos Schulz –
Abril/Julho de 2019
Brunno Nunes.